Dupla face

Diego dos Reis de Oliveira

A tão enaltecida humildade do papa Francisco está sendo tratada de modo contrastante com a ostentação do pontífice anterior. No entanto, se levarmos em conta que, segundo a Bíblia, a humildade é apresentada com traços ainda mais radicais, ao ponto, por exemplo, de Cristo dizer que aqueles que se humilham serão exaltados (Lc 14, 7-11), as atitudes divulgadas até então pelo novo papa não deveriam causar tanta comoção.

É claro que numa sociedade como a brasileira, onde o individualismo assumiu uma relação aberta com o patrimonialismo (a posse de bens é o fim para o qual se destinam todos os investimentos), a postura de Francisco acaba rebatendo essa procura desenfreada que acaba, no final das contas, colocando as relações humanas em acentuado prejuízo.

A visita do papa teve um efeito catártico sobre os brasileiros, em especial os mais jovens. Resta saber se isso terá algum desdobramento prático, até porque a homilia apresentada em Aparecida cobra da sociedade um investimento nos “protagonistas da construção de um mundo melhor”. Percebo que os jovens estão voluntariamente apartados dos espaços onde de fato a sociedade é pensada e organizada; muitos preferem estacionar suas convicções em alguns esteriótipos a assumir, a exemplo de Cristo, um papel para além da simples idolatria ou fetichismo. Não compactuo da visão de que o “dragão” está por trás disso; é muito simples responsabilizar um agente externo quando o assunto é o bom e velho ser humano...

Considero apelativo, porém compreensível, o discurso que aposta numa causa que, sob o ponto de vista racional, não tem a menor consistência. Francisco diz que o casamento homossexual é um “movimento do diabo”. Vejam: é cômodo invocar uma entidade para descredibilizar as escolhas de cada um. A Igreja não tem argumentos para tratar de temas espinhosos sem recorrer a abstrações.

Ao lado de uma ética favorável à humildade, o papa Francisco conserva aquela mesma miopia medieval que custou a vida de milhares de pessoas. A única diferença é que o combustível para as fogueiras do século XXI está nos discursos de grandes líderes, os quais, nesse caso, servem apenas para agravar os preconceitos e reduzir os “desviados” a meras vítimas do diabo.